domingo, 7 de março de 2010

Rádio


(Ulver - We are the Dead)


Ruídos, sons longínquos que se aproximam num crepitar sussurrante, que se vêem aninhar junto do fogo eléctrico do diálogo silencioso de transístores, resistências e condensadores.

Ondas fantasmagóricas invadem o éter, impelindo a dança rodopiante da energia com a matéria a assentar arraiais numa placa de sílica, plástico e desenhos de solda, ora plúmbea, ora acobreada. Uma fatia de sol codificada, um rasgão na quietude do turbilhão subatómico do velo invisível que nos rodeia, um convite ao desassossego, uma sedutora teia de nada que em tudo se enrola, que atravessa carne e osso, mente e alma, colide na pedra e reflecte no vidro e no metal, propaga-se, desdobra-se em harmónicos precisos, traz informação no seu ventre, qual cadeia de ADN prenhe de vozes, música... e ruído, um infindável ruído miudinho, sibilante como a serpente de Eva, que assobia como as areias do deserto a girarem no vento quente, áspero e seco da fúria do Saara ou do Sael.


Xavier escutava. Carregava gentilmente no botão, sentido o prazer íntimo do pequeno clique que activava a passagem de corrente pela bobine do transformador, iniciando a cascata de electrões gorgolejante de impulsos alternados. Girava gentilmente o potenciómetro, ajustando o volume até este ser o adequado para os seus frágeis ouvidos de ouvinte esfomeado. Baixo. Gostava do som baixo, em que a emissão se confundia com a estática e o burburinho das frequências sobrepostas. Sintonizando lentamente ao longo de toda a largura de banda, cortando e modelando as ondas electromagnéticas que vertiam pela antena de cobre e alumínio do pequeno receptor de secretária, Xavier vogava e conhecia mundos, descobria maravilhas e calamidades, escutava sábios diligentes e gente execrável e patética a guinchar por atenção, deliciava-se com melodias divinas, canções embaladoras e poemas poderosos como as palavras dos deuses no Olimpo e os tormentos das almas no Hades. Contorcia-se com esgares de repulsão perante a banalidade e mediocridade popularucha dos temas que emitiam nas rádios comerciais, ficava chocado quando escutava “a música da sua preferência”, ou pior, “para escutar com alguma insistência”. Xavier tinha que ir a correr vomitar o asco e desprezo daqueles aqueles ataques de vulgaridade mercantilista, que iriam não só passar impunes, mas ainda ser apaparicados pelos media, numa orgia de interesses e jogos de poder centrados no volume comercial das vendas de discos. Que se danasse o livre gosto de quem estivesse do outro lado, teriam que ser desbastados e educados a escutar “a musica da sua preferência”.

Mas Xavier não desistia, a rádio era a sua companhia de eleição, a única no mundo que existia para ele, e ele escutava, percorria a escala de megahertz em onda média e frequência modelada, sempre em busca da companhia ideal para mais uma hora de solidão.

Xavier estava só. Tinha apenas por companhia os outros fantasmas que se passeavam pelas ondas da rádio e o seu cadáver putrefacto que jazia sobre o chão da sala há mais de três anos, para o qual ele olhava de tempos a tempos com um olhar desinteressado...

6 comentários:

  1. Confessa Nuno! Tens algures escondido, no teu bolso, um ser bio daqueles meio-perdidos-neste-mundo, que te diz estas palavras ao ouvido e tu escreves... acertei? :D Very nice!!

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  2. Inês: Ele tem uma musa no bolso esquerdo, que é negra, e outra no bolso direito, luminosa, que lhe ditam as palavras e a inspiração. :) Como diz o Adolfo, "tenho um anjo pela tardinha que me embala com o seu canto."
    Um dos teus contos mais negros. Um dos meus preferidos, também. Excelente sonorização, como diria O Vulto. :) Bem... vou sintonizar a onda média. Pode ser que ouça uma música da minha preferência. :D

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  3. faltava ao Xavier a energia da rádio. a dele:)

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  4. "Tudo me parece um reflexo, tudo o que ouço, um eco distante...
    Passam os séculos e gasta-se o mundo, mas a minha alma permance jovem; vigia entre as estrelas, na noite dos tempos,escuto."
    J. Vietinghoff
    muito bom Nuno:)

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  5. bom! mesmo muito. cinematográfico, visual.

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